DOMINGO NA ESTRADA
Carlos Drummond de Andrade
Do avião saltamos para a jardineira, a caminho da cidade. A princípio, só o trajeto aborrecido, na pressa de chegar. Que fazer desses ermos lobrigados de passagem, que nos sensibilizam a vista, e daqui a pouco esqueceremos na contemplação de outras formas naturais menos secas.
Há uma lagoa na região, e não se deixa ver. De repente começamos a sentir que essa terra humilde vai nos interessando .................... seu desconforto. O mato dos barrancos perdeu o verde nativo; tudo ficou vermelho, amarelo ou pardo, tocado de pó incansável. Como se chamam esses vegetais só Riobaldo Tatarana sabe, e hei de consultá-lo na volta. A paisagem toca .................... que não tem, pela pobreza calma. Não há imprevisto. Nos pastos de grama pouca, só as grandes bossas dos cupins se expõem, bichos imobilizados. E à paz do campo mineiro se ajunta, aprofundando-a, a paz do domingo mineiro.
Nunca será tão domingo como aqui, e domingos e domingos de eternidade se concentram .................... vigorosa dominicalização. Não acontecer nada, que beatitude! Deixar o mato crescer – mas o próprio mato foge à obrigação, e goza o domingo. Lá estão o touro zebu e seu harém de nobres e modestas vacas – porque o zebu alia à majestade indiana a placidez das Minas, e boi nenhum se fez tão mineiro quanto esse, e bicho nenhum é tão mineiro quanto o boi, em seu calado conhecimento da vida, sua participação no trabalho. O rebanho amontoa-se em círculo, algumas reses em pé, outras deitadas, chifres cumprimentando-se sem ruído. Parece um só boi espalhado, imaginando. Com o pincel do rabo o milenar movimento de repelir a mosca, se é que não o pratica pelo prazer de abanar-se. Mas há bois esparsos, bois solitários, que se portam junto a árvores, aparentemente recolhidos; ou fitam o carro que levanta poeira sobre a poeira habitual, e ruminam não sei que novelas de boi.
A terra é um universal domingo, as estampas não se destacam, desaparecem na série. Figura humana é que custa a aparecer. Só o garotinho que brincava no barro, entre galinhas, e o braço de homem, no fundo escuro da casa , erguendo a garrafa.
Gente começa afinal a surgir, desembocando da ruazinha de arraial, em caminhões alegres, com inscrições: “Fé em Deus e pé na tábua”, “Chiquinha casa comigo”, e um ar de festa que é também domingueiro, festa nas roupas claras, nos lenços coloridos das cabeças: no riso largo, nos gritos. Rapazes de calção, viajando de pé, aos berros. Vão disputar a grande partida em dos dez lugares da redondeza onde o futebol resolveu o problema da felicidade.
Há também o bêbado da estrada. Não é patético
como o
dos poetas neoromânticos que exploram o gênero, é simplesmente bêbado, sem pretensões, também ele universal na pureza de sua irresponsabilidade. Está a mil sonhos do futebol,
mas a parada do caminhão para tomar água lhe comunica a chama do esporte, e ei-lo que engrola a enérgica.
Vocês me tragam a vitó... a vitóooria! Eu fico esperando a vit...
Todos aplaudem freneticamente. Mas as pernas arriam, e ele fica ali, desmanchado, à sombra da goiabeira, dormindo na manhá de Minas Gerais...
Carlos Drummond de Andrade – Poemas e Poesias.
Em “dos poetas neo-românticos que exploram
o gênero” ao substituir o termo “gênero” por um pronome, de acordo com a norma culta tem-se: