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14 dólares
Carlos Drummond de Andrade
Um poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me que sua glória transpusera enfim o limite do Villarino e se projetara(c) nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia que nunca jornal algum nessas brenhas ousou soltar por trabalho desse naipe.
– Mil contos? – perguntei-lhe, assanhadíssimo.
– Tanto assim, não. 20 dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica. Legal(a), não acha?
Não dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz [...]. Em todo caso, apeteceu-me espiar a cor do dinheiro forte.
– Amigo, vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação para a cidade, e ando farto da efígie do Rio Branco. Me mostre seu dolarzinho.
– Bem, devo explicar que dos meus 20 dólares poéticos, o governo norteamericano papou(a) 6, de imposto de renda. Cobrado na fonte, hein? [...]
– De qualquer maneira, 14 dólares são 14 dólares – sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de convicção profunda.
– Ora deixe ver os 14 dólares.
– O cheque?
– Não, a espécie, a figurinha da águia.
– Bem, não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas o caixa, no banco americano que o descontou(b)(c), explicou-me que dólar é a mesma coisa que cruzeiro.
– E você acreditou?
– Era acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque, me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía 14 dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético, esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O Banco os desembolsaria aqui, mas ficaria com outros 14 em Nova York, para importação de tratores, geladeiras, etc.
– E ele?
Sorriu, mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. E tinha mais: ia pagar-me(c) ao preço de compra, não ao de venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo, retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça: “Também não está comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos convém(b).” Em resumo: saí com 1.029 cruzeiros no bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira oportunidade que me dão de possuir 20, logo de saída perco 6, e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os venda e quem os compre, mas ninguém os vê(c). Tenho a impressão de que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo. [...]
Fala, Amendoeira: costumes. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.766-767.
No texto, de acordo com os padrões da norma culta da língua portuguesa, é FALSO afirmar que:
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14 dólares
Carlos Drummond de Andrade
Um poeta da geração de 45, meu amigo (há desses milagres), contou-me que sua glória transpusera enfim o limite do Villarino e se projetara nos Estados Unidos. Uma revista da Madison Avenue pedira-lhe versos, traduzira-os limpamente e pagara por eles quantia que nunca jornal algum nessas brenhas ousou soltar por trabalho desse naipe.
– Mil contos? – perguntei-lhe, assanhadíssimo.
– Tanto assim, não. 20 dólares. Mas o versinho era curto, sem métrica. Legal, não acha?
Não dá para um automóvel, pensei comigo, mas felicitei o rapaz [...]. Em todo caso, apeteceu-me espiar a cor do dinheiro forte.
– Amigo, vi poucos dólares em minha vida. Viagem mesmo, faço a de lotação para a cidade, e ando farto da efígie do Rio Branco. Me mostre seu dolarzinho.
– Bem, devo explicar que dos meus 20 dólares poéticos, o governo norteamericano papou 6, de imposto de renda. Cobrado na fonte, hein? [...]
– De qualquer maneira, 14 dólares são 14 dólares – sentenciei, mais para confortar o jovem confrade que como eco de convicção profunda.
– Ora deixe ver os 14 dólares.
– O cheque?
– Não, a espécie, a figurinha da águia.
– Bem, não houve propriamente dólares. O cheque dizia esse nome santo, mas o caixa, no banco americano que o descontou, explicou-me que dólar é a mesma coisa que cruzeiro.
– E você acreditou?
– Era acreditar ou largar. Disse-me que, onde quer que eu levasse o cheque, me pagariam em cruzeiros, a menos que eu fosse a Nova York receber na matriz. Tentei argumentar que aquilo era uma importação de capitais, saudável à pátria: a tal revista possuía 14 dólares em Nova York, e por artes de um simples poema hermético, esses dólares vinham dinamizar a economia brasileira. O Banco os desembolsaria aqui, mas ficaria com outros 14 em Nova York, para importação de tratores, geladeiras, etc.
– E ele?
Sorriu, mas ponderou que eram ordens da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil. E tinha mais: ia pagar-me ao preço de compra, não ao de venda do dólar. Mas eu não estou vendendo, estou recebendo, retruquei ao caixa. Ele abanou a cabeça: “Também não está comprando; então, aplica-se a cotação de venda, que mais nos convém.” Em resumo: saí com 1.029 cruzeiros no bolso, um tanto confuso. Veja o que é o dólar: a primeira oportunidade que me dão de possuir 20, logo de saída perco 6, e os outros se dissolvem no ar em simples cruzeiros. Há quem os venda e quem os compre, mas ninguém os vê. Tenho a impressão de que dólar não existe, apesar de tão forte, ou por isso mesmo. [...]
Fala, Amendoeira: costumes. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.766-767.
A leitura do texto NÃO permite inferir que:
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