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Foram encontradas 50 questões.

2511170 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―"ferimentos por arma branca") é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
A palavra ―"algoz" pode ser substituída sem prejuízo de sentido no trecho em que aparece por
 

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2511169 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―"ferimentos por arma branca") é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
A frase ―"Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais" pode ser reescrita, de modo a manter o sentido, da seguinte maneira:
 

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2511168 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―"ferimentos por arma branca") é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Considerando a acentuação gráfica das palavras no texto, julgue os itens a seguir:
I. A palavra ―"vitima" deveria receber acento agudo, assim como acontece;
II. A palavra ―"máximo" possui acento agudo pelo mesmo motivo que a palavra ―"véspera" é acentuada;
III. A palavra ―"recorde" deveria receber acento agudo na sílaba ―re-― para indicar corretamente sua pronúncia como proparoxítona;
IV. As palavras ―"país", ―"juízo" e ―"aí", quando têm retirados seus acentos gráficos, são transformadas em outras palavras da língua portuguesa.
 

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2511167 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
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Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―"ferimentos por arma branca") é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Sobre as estatísticas apresentadas no penúltimo parágrafo, julgue os itens a seguir:
I. O número de crimes praticados com arma branca no Rio de Janeiro no ano de 2015 permaneceu o mesmo em comparação com o ano de 2014.
II. O estado do Rio de Janeiro teve o menor número de homicídios por facada no Brasil, no ano de 2013.
III. As armas de fogo foram usadas em 59,9% dos casos de latrocínio e no restante dos casos foram usadas armas brancas.
IV. A proporção de mortes nos crimes por arma branca no Rio de Janeiro aumentou nos quatro primeiros meses de 2015, em comparação com o mesmo período de 2014.
 

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Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―"ferimentos por arma branca") é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Considerando a estrutura morfossintática da língua portuguesa adequada à norma culta, leia o trecho ―"Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde" e indique a opção INCORRETA:
 

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2511165 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―ferimentos por arma branca‖) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Em diversos trechos do texto, o autor utiliza termos relacionados ao campo financeiro para reforçar a ideia de que a vida vale pouco quando se está à mercê da violência. Considerando essa utilização, julgue os itens a seguir:
I. O contrato a que o autor se refere metaforicamente é estabelecido entre o bandido e a vítima, de maneira tácita e imposta, indicando que, ao recusar entregar o celular, a vítima estava ciente de que poderia sofrer as consequências;
II. As referências ao ato de negociar no texto ocorrem sempre para indicar o tipo de contato que se estabelece entre agressor e vítima quando a vida é objeto da negociação;
III. As referências ao ato de cotar ocorrem no texto para indicar o valor que a vida do autor foi adquirindo conforme se sucediam as ações relacionadas à violência que sofreu;
IV. A liquidação da vida a que o autor se refere pode indicar que a vida é passível de ser negociada a preços baixos em casos de violência, assim como pode se referir à sua finalização nesses mesmos casos.
 

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2511164 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―ferimentos por arma branca‖) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
A opção em que a crase está sendo empregada pelo mesmo motivo que em ― "O encontro foi às cegas" pode ser vista em:
 

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2511163 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―ferimentos por arma branca‖) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Considerando a caracterização do gênero do qual o texto em questão participa e os diversos tipos textuais que podem constituí-lo, julgue os itens a seguir:
I. O texto possui passagens narrativas que estão a serviço dos objetivos do gênero do qual participa, como é possível observar no segundo parágrafo, quando o autor relata como aconteceu o crime do qual foi vítima;
II. O texto participa do gênero Artigo de Opinião, pois, a partir do relato do crime que sofreu, o autor expressa seu ponto de vista sobre determinado assunto, apresentando, inclusive, estatísticas que embasam seu posicionamento;
III. O texto participa do gênero Conto, pois, embora o autor relate acontecimentos reais da sua vida, utiliza recursos estilísticos tipicamente literários, como a atribuição metafórica de valor monetário à vida, além de possuir diversas sequências narrativas;
IV. O texto possui passagens opinativas que estão a serviço dos objetivos do gênero do qual participa, como é possível observar no quinto parágrafo, no qual o autor fala sobre sua atitude após o crime.
 

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2511162 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―ferimentos por arma branca‖) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo 64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde. A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios roubos seguidos de morte e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Sobre os recursos de construção de sentido utilizados no texto, é INCORRETO afirmar que
 

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2511161 Ano: 2015
Disciplina: Português
Banca: UFPI
Orgão: UFPI
Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar
Setecentos reais era quanto eu valia em 14 de maio de 2015, numa quase madrugada em São Paulo. Na hora, nem deu tempo de cotar no Google. Era o preço do telefone que eu carregava num beco escuro e que me conectou à ponta de uma arma branca, como as centenas que matam brasileiros todo mês.
O encontro foi às cegas e a abordagem do sujeito não deixava clara a intenção. Quando tentou tomar o celular e não concordei, firmamos as bases do contrato. Para ambas as partes, minha vida era tão obsoleta quanto o aparelho que eu carregava na mão. Nada mais, nada menos. Ele cumpriu a parte no acordo e executou o pagamento em quatro vezes. Só não liquidou a fatura por um erro na transação. Falha no sistema. Talvez provocado pela falta de energia elétrica na vizinhança. O breu se instalou na véspera, quando um sujeito vestindo uniforme de uma empresa de telecomunicações, adesivo no carro e tudo, fingia fazer reparos na rede enquanto roubava fiação. Para o pirata caçador de cobre eu valia, no máximo, R$ 15 o quilo.
No caminho para o hospital, a cotação pegou carona com o amigo que me socorreu. E acelerou pesado. Em poucos minutos, somando o valor das multas pelos sinais vermelhos furados e os limites de velocidade excedidos, estimo que minha vida tenha atingido o patamar de R$ 3.800: um recorde. Vou parar de calcular agora que cheguei ao auge. E ao pronto-socorro.
Mãos ao alto era a melhor posição para ficar na maca. Assim incomodava menos a estocada no sovaco e a mais funda, que atravessou as costas e espetou o pulmão. Passadas algumas horas, hemograma, raio-x, tomografia e ultrassom informavam que o corpo estava bem. O último exame foi de consciência. Me dei conta de que assim como o telefone foi poupado também não me tiraram o juízo. Minha fome, de quase 24 horas por causa do período de observação clínica, não era de vingança e não tinha nada a ver com redução disso, criminalização daquilo e pena de sei lá o quê. Foi só então que me senti a salvo — de mim mesmo. Percebi que o choque não me paralisaria, que não me interessava o sangue nem o sofrimento do meu algoz, e que continuaria disposto a seguir pelos mesmos caminhos de todo dia. Ainda que reagir assim fosse andar na contramão. Dentro e fora do hospital, reparei que ignorar a revolta, o revide e o medo choca mais do que levar facada na rua.
O que se espera de uma vítima de FAB (sigla que os plantonistas usavam na emergência para meus ―ferimentos por arma branca‖) é trocar de caminho, de meio de transporte, de casa, de país. Foi o que me sugeriram várias vezes. Continuar levando a mesma vida chega a ser ofensivo para alguns, condenável mesmo: fui e ainda sou acusado de ser inocente demais. Longe disso. Só não quero perder a conexão com o lugar em que vivo e com as pessoas que cruzam comigo. Deixar de circular é matar um pouco a própria cidade. Quanto menos gente na rua, mais ela vira território hostil, terra de ninguém. Transitar pela rua, para mim, é inegociável, um jeito simples de valorizar a vida. Acho muito mais arriscado viver como se ela não valesse nada: levando facada como se fosse do jogo, por exemplo. Até hoje, a pergunta que mais ouço sobre o episódio, a preocupação mais latente que se manifesta ao notarem estar tudo bem comigo, é ―mas ele levou o celular?". A maioria se decepciona ou se revolta quando mostro o telefone velho e estilhaçado. Como se o assalto fosse justificável se tivesse cumprido seu objetivo. É a versão com cortes do ―estupra, mas não mata‖: o ―esfaqueia, mas leva".
Passada uma semana da violenta negociação, sentei para escrever este texto diante do noticiário e entendi melhor a banalização do esfaqueamento: minha história não era nada especial. Um ciclista fora morto a facadas na Lagoa Rodrigo de Freitas, que conecta alguns dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro. Uma turista chilena, ferida no pescoço enquanto tomava sol na Glória, também no Rio, também pela tal da arma branca. Para completar o bloco, um cidadão carioca, portando um facão, foi preso preventivamente antes que tivesse a chance de negociar a vida de alguém por aí. Poucos minutos depois, no meu bairro paulistano, passei por cima de marcas de sangue pisado na esquina. Elas indicavam a trajetória final de alguém arrastado do asfalto até a calçada por onde passo todo dia levando e trazendo meu moleque da escola. Isso para não mencionar outros milhares de mortes semelhantes que não ocupam manchetes nem boletins de ocorrência.
Estamos armados e desarmados até os dentes. Somos o país em que mais se mata no mundo (64 mil homicídios em 2012, segundo a Organização Mundial de Saúde). A violência é tão cotidiana e gratuita que a discussão sobre liberar a posse de armas de fogo aos cidadãos soa irrelevante, já que sequer precisamos delas para violentar uns aos outros - embora ainda sejam preferência nacional. Tem-se falado muito sobre uma epidemia de crimes com armas brancas com suposto foco no Rio de Janeiro. Números da Secretaria Estadual de Segurança fluminense, porém, indicam que o cenário é ilusório - o Estado, inclusive, é onde menos se mata a facadas no Brasil*. Nos primeiros quatro meses de 2015, houve 660 ocorrências deste tipo contra 890 no mesmo período de 2014 (diminuição de 26%). As mortes se mantiveram estáveis: 77 nos dois períodos. Seguindo no universo da pesquisa, o uso de objetos cortantes ou perfurantes se deu em 8,6% dos latrocínios (roubos seguidos de morte) e em 4,2% dos homicídios. É pouco comparado aos registros de crimes com armas de fogo, envolvidas em 59,9% dos latrocínios e 62,7% dos homicídios. Por outro lado, ter quase 20 mortes a facada todo mês em um único Estado brasileiro não pode ser aceitável.
Assim como não dá mais para tolerar a liquidação da vida por aqui. Nem a noção generalizada, entre golpeadores e golpeados, de que matar por causa de um telefone, de uma bicicleta ou de um par romântico faz parte do negócio. E de que temos direito de revidar e de impor ao agressor a mesma violência que nos vitima. Reagir assim é admitir negociar o quanto a vida vale. E nesse tipo de negociação, a do outro sempre vale menos que a minha, que vale menos que a do outro, sucessivamente. Depreciação após depreciação, zeramos o valor da vida.
* Dados do Mapa da Violência 2015, referentes a homicídios ocorridos em 2013.
JOKURA, Tiago. Descobri que minha vida vale R$ 700. E, do jeito que tá, é pegar ou largar. Revista Superinteressante, São Paulo, edição 349, jul. 2015. Disponível em: <http://super.abril.com.br/ideias/descobri-que-minha-vida-vale-r-700-e-do-jeito-que-ta-e-pegar-ou-largar>. (com alterações)
Considerando os mecanismos de referenciação utilizados no texto, julgue os itens a seguir:
I. A expressão ―"O encontro" se refere ao contato entre o autor e a ponta da arma branca que lhe feriu;
II. A expressão ―"o pagamento" se refere às facadas que o autor levou no assalto;
III. As expressões ―"o pirata caçador de cobre" e ―"o sujeito" se referem ao bandido que feriu o autor do texto;
IV. A expressão ―"as mortes" se refere a todas as mortes ocorridas nos quatro primeiros meses de 2015 no Rio de Janeiro.
 

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