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A minha salamandra
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei
saber se uma salamandra tinha quatro ou seis
pernas. Já não me lembro em que episódio
novelesco pretendia envolver as pernas da minha
salamandra, mas a verdade é que precisava
saber — e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias
pernas? Pensava então, deixando que elas me
levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas
muito esquisitas. A experiência própria nem
sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha
infância nos galhos de uma mangueira,
chupando manga o dia todo, e não soube
responder a um meu amigo, excelente
romancista, quanto tempo levava para germinar
um caroço de manga.
Contou-me ele, na época, que andou
precisando saber este pormenor, em razão de
uma história que estava escrevendo. Depois de
perguntar a um e outro, e não obtendo senão
respostas vagas, telefonou para a repartição do
Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais
apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário
que o atendeu ficou simplesmente perplexo:
— Caroço de manga? Que brincadeira é
essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente,
havia quem talvez soubesse — um especialista no
assunto, lotado num departamento ao qual estava
afeto o setor de fruticultura. Discou para lá — mas só
conseguiu colher vagos palpites:
— Um caroço de manga? Bem, deve levar
um ou dois meses, o senhor não acha?
— Não acho nada: preciso saber com
exatidão.
— Por quê?
— Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente
despertavam reminiscências infantis:
— Na minha casa tinha uma mangueira. A
manga-espada, por exemplo, se bem me
lembro...
— Boa é a manga carlota, aquela pequenina,
sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de
itamaracá.
— O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer
com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do
Ministro:
— Queria uma informaçãozinha de Vossa
Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país
de economia essencialmente agrícola se
ninguém, nem o próprio Ministro da Agricultura,
sabe informar quanto tempo leva para germinar
um caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e
silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se
não sei dizer com quantas pernas se faz uma
salamandra? O mundo anda cheio de pernas, e
o coração do poeta já perguntou para que tanta
perna, meu Deus. As da salamandra — quatro,
ou seis — nada acrescentam ao meu mundo
interior, senão a ligeira desconfiança de que
acabo tendo quatro. No entanto, as de uma
jovem galgando comigo as pedras do Arpoador,
por exemplo, apenas duas, podem sustentar o
universo — vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que
um caroço de manga. Onde se acendem estrelas
inexistentes e os astros desandam nas suas
órbitas. Onde se abrem abismos de uma
profundeza que nem a imaginação do romancista
ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais
exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas
sombras se arrastam seres vorazes e bem mais
misteriosos que a salamandra, salamandras...
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. 14ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2010.)
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Ficou dois
Faz quase 20 anos. Eu estava no mezanino
de um auditório prestigiando a formatura de um
grande amigo. Ele cursou Direito numa instituição
muito qualificada e seu tão esperado momento
de comemoração pelo término da faculdade
havia chegado. Duas fileiras abaixo e duas
cadeiras para a esquerda, um rapaz
acompanhava todo o desenrolar do evento. Não
informo o nome do meu amigo, da instituição e do
rapaz para não criar constrangimentos. Pra falar a
verdade, desconheço o nome do rapaz, mas, como
sei que hoje qualquer pista leva rapidinho à
descoberta de quem é a pessoa, prefiro preservá-la. Não estou aqui para testar a eficiência do
jornalismo investigativo, mas para compartilhar
uma das situações pitorescas por mim
vivenciadas, de modo a refletir sobre ela e,
principalmente, aprender com ela.
No palco e na plateia, havia alegria para dar
e vender. De repente, o paraninfo foi chamado
para fazer o seu pronunciamento. Por um bom
tempo, uma saudação efusiva se manteve até
que começasse a falar. Tão logo cessou aquela
manifestação calorosa, o rapaz desatou a gritar:
“ficou dois!”. A frase deixou subentendido que ele
mesmo ou algum amigo dele teria sido reprovado
pelo paraninfo. Uma mensagem assim lançada
aos quatro ventos naquele ambiente, a priori,
depõe contra a integridade do docente.
“Carrasco, por que reprovar formandos? Que
falta de sensibilidade! – poderia pensar o
público”. Revisitando esse episódio nos dias de
hoje, eu até conseguiria me colocar no lugar do
paraninfo e indagaria: será que esses dois alunos
se empenharam ao realizar os trabalhos e provas
da disciplina? Caso sim, qual a qualidade desses
trabalhos? Como foi o desempenho dos
discentes nas avaliações? Será que eles foram
assíduos e, mais que isso, foram pró-ativos e
participativos nas aulas? Ou demonstraram descaso
ao longo do semestre? Supondo que tivessem
apresentado dificuldades, será que procuraram
conversar com o professor sobre esse assunto? Por
fim, deve haver diferença de tratamento entre um
aluno formando e um não formando?
Ninguém é paraninfo por acaso. Trata-se de
uma pessoa que granjeia ampla credibilidade e
confiança junto aos concluintes da graduação.
Não sou do Direito, mas busco agir com justiça na
prática do ensino. Creio, sinceramente, que não
haja professores com maior senso de justiça que
os dedicados ___ área do Direito. Todos, a bem da verdade, somos juízes, e por isso mesmo
muitas vezes julgamos fatos e indivíduos com
base nas aparências e em poucas ocasiões
alicerçados na essência das coisas. É lamentável
tal realidade, porém, o importante é que o
paraninfo e os dois alunos devem saber o porquê
daquelas reprovações. De minha parte, além de
dar crédito ao professor e entender que a conduta
do rapaz acabou sendo completamente
deselegante, lembro-me que me debati demais
para não perder a compostura. “Ficou dois! Que
pérola! Se o cara ainda for do Direito, sensacional!
– avaliava com meus botões, esforçando-me para
que risada nenhuma irrompesse naquele
instante”. Sim, porque pela gramática tradicional
o correto seria dizer “ficaram dois”.
Acontece que mais tarde compreendi que a
gramática deve, de preferência, ser dominada
pelos falantes da língua portuguesa, porém em
muitos casos ela é simplesmente um livro no qual
diversos conteúdos estão sepultados. Já ___
língua, objeto de estudo dos linguistas, quem dá
vida é o povo. E nada é mais heterogêneo do
que o povo, se considerarmos, especialmente, as
regiões e os níveis de escolaridade das
diferentes gerações de nosso país. Não
podemos esquecer que na praia, no bem-bom
das férias, não se fala com a formalidade que uma
reunião de negócios demanda. Além disso, a
oralidade, invariavelmente, decorre da
improvisação discursiva do emissor, ao passo
que a linguagem escrita é afeita ao planejamento
e à revisão textual. Os sociolinguistas estudiosos
da variação diafásica que o digam.
Independentemente de seus posicionamentos –
que merecem e aqui recebem, de antemão, todo o
meu respeito e apreço –, concluo que, na situação
de comunicação exposta, o rapaz se pronunciou de
modo inadequado. Mais do que isso: perdeu uma
ótima oportunidade para ficar calado. Se assim
procedesse, para a felicidade dos gramáticos, teria
deixado o Rui Barbosa descansar em paz.
(Texto adaptado especialmente para esta prova.
Disponível em:
https://www.linkedin.com/pulse/ficou-dois-tiagopellizzaro/. Acesso em: 13/09/2019.)
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A minha salamandra
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei
saber se uma salamandra tinha quatro ou seis
pernas. Já não me lembro em que episódio
novelesco pretendia envolver as pernas da minha
salamandra, mas a verdade é que precisava
saber — e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias
pernas? Pensava então, deixando que elas me
levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas
muito esquisitas. A experiência própria nem
sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha
infância nos galhos de uma mangueira,
chupando manga o dia todo, e não soube
responder a um meu amigo, excelente
romancista, quanto tempo levava para germinar
um caroço de manga.
Contou-me ele, na época, que andou
precisando saber este pormenor, em razão de
uma história que estava escrevendo. Depois de
perguntar a um e outro, e não obtendo senão
respostas vagas, telefonou para a repartição do
Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais
apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário
que o atendeu ficou simplesmente perplexo:
— Caroço de manga? Que brincadeira é
essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente,
havia quem talvez soubesse — um especialista no
assunto, lotado num departamento ao qual estava
afeto o setor de fruticultura. Discou para lá — mas só
conseguiu colher vagos palpites:
— Um caroço de manga? Bem, deve levar
um ou dois meses, o senhor não acha?
— Não acho nada: preciso saber com
exatidão.
— Por quê?
— Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente
despertavam reminiscências infantis:
— Na minha casa tinha uma mangueira. A
manga-espada, por exemplo, se bem me
lembro...
— Boa é a manga carlota, aquela pequenina,
sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de
itamaracá.
— O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer
com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do
Ministro:
— Queria uma informaçãozinha de Vossa
Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país
de economia essencialmente agrícola se
ninguém, nem o próprio Ministro da Agricultura,
sabe informar quanto tempo leva para germinar
um caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e
silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se
não sei dizer com quantas pernas se faz uma
salamandra? O mundo anda cheio de pernas, e
o coração do poeta já perguntou para que tanta
perna, meu Deus. As da salamandra — quatro,
ou seis — nada acrescentam ao meu mundo
interior, senão a ligeira desconfiança de que
acabo tendo quatro. No entanto, as de uma
jovem galgando comigo as pedras do Arpoador,
por exemplo, apenas duas, podem sustentar o
universo — vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que
um caroço de manga. Onde se acendem estrelas
inexistentes e os astros desandam nas suas
órbitas. Onde se abrem abismos de uma
profundeza que nem a imaginação do romancista
ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais
exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas
sombras se arrastam seres vorazes e bem mais
misteriosos que a salamandra, salamandras...
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. 14ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2010.)
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Ficou dois
Faz quase 20 anos. Eu estava no mezanino
de um auditório prestigiando a formatura de um
grande amigo. Ele cursou Direito numa instituição
muito qualificada e seu tão esperado momento
de comemoração pelo término da faculdade
havia chegado. Duas fileiras abaixo e duas
cadeiras para a esquerda, um rapaz
acompanhava todo o desenrolar do evento. Não
informo o nome do meu amigo, da instituição e do
rapaz para não criar constrangimentos. Pra falar a
verdade, desconheço o nome do rapaz, mas, como
sei que hoje qualquer pista leva rapidinho à
descoberta de quem é a pessoa, prefiro preservá-la. Não estou aqui para testar a eficiência do
jornalismo investigativo, mas para compartilhar
uma das situações pitorescas por mim
vivenciadas, de modo a refletir sobre ela e,
principalmente, aprender com ela.
No palco e na plateia, havia alegria para dar
e vender. De repente, o paraninfo foi chamado
para fazer o seu pronunciamento. Por um bom
tempo, uma saudação efusiva se manteve até
que começasse a falar. Tão logo cessou aquela
manifestação calorosa, o rapaz desatou a gritar:
“ficou dois!”. A frase deixou subentendido que ele
mesmo ou algum amigo dele teria sido reprovado
pelo paraninfo. Uma mensagem assim lançada
aos quatro ventos naquele ambiente, a priori,
depõe contra a integridade do docente.
“Carrasco, por que reprovar formandos? Que
falta de sensibilidade! – poderia pensar o
público”. Revisitando esse episódio nos dias de
hoje, eu até conseguiria me colocar no lugar do
paraninfo e indagaria: será que esses dois alunos
se empenharam ao realizar os trabalhos e provas
da disciplina? Caso sim, qual a qualidade desses
trabalhos? Como foi o desempenho dos
discentes nas avaliações? Será que eles foram
assíduos e, mais que isso, foram pró-ativos e
participativos nas aulas? Ou demonstraram descaso
ao longo do semestre? Supondo que tivessem
apresentado dificuldades, será que procuraram
conversar com o professor sobre esse assunto? Por
fim, deve haver diferença de tratamento entre um
aluno formando e um não formando?
Ninguém é paraninfo por acaso. Trata-se de
uma pessoa que granjeia ampla credibilidade e
confiança junto aos concluintes da graduação.
Não sou do Direito, mas busco agir com justiça na
prática do ensino. Creio, sinceramente, que não
haja professores com maior senso de justiça que
os dedicados ___ área do Direito. Todos, a bem da verdade, somos juízes, e por isso mesmo
muitas vezes julgamos fatos e indivíduos com
base nas aparências e em poucas ocasiões
alicerçados na essência das coisas. É lamentável
tal realidade, porém, o importante é que o
paraninfo e os dois alunos devem saber o porquê
daquelas reprovações. De minha parte, além de
dar crédito ao professor e entender que a conduta
do rapaz acabou sendo completamente
deselegante, lembro-me que me debati demais
para não perder a compostura. “Ficou dois! Que
pérola! Se o cara ainda for do Direito, sensacional!
– avaliava com meus botões, esforçando-me para
que risada nenhuma irrompesse naquele
instante”. Sim, porque pela gramática tradicional
o correto seria dizer “ficaram dois”.
Acontece que mais tarde compreendi que a
gramática deve, de preferência, ser dominada
pelos falantes da língua portuguesa, porém em
muitos casos ela é simplesmente um livro no qual
diversos conteúdos estão sepultados. Já ___
língua, objeto de estudo dos linguistas, quem dá
vida é o povo. E nada é mais heterogêneo do
que o povo, se considerarmos, especialmente, as
regiões e os níveis de escolaridade das
diferentes gerações de nosso país. Não
podemos esquecer que na praia, no bem-bom
das férias, não se fala com a formalidade que uma
reunião de negócios demanda. Além disso, a
oralidade, invariavelmente, decorre da
improvisação discursiva do emissor, ao passo
que a linguagem escrita é afeita ao planejamento
e à revisão textual. Os sociolinguistas estudiosos
da variação diafásica que o digam.
Independentemente de seus posicionamentos –
que merecem e aqui recebem, de antemão, todo o
meu respeito e apreço –, concluo que, na situação
de comunicação exposta, o rapaz se pronunciou de
modo inadequado. Mais do que isso: perdeu uma
ótima oportunidade para ficar calado. Se assim
procedesse, para a felicidade dos gramáticos, teria
deixado o Rui Barbosa descansar em paz.
(Texto adaptado especialmente para esta prova.
Disponível em:
https://www.linkedin.com/pulse/ficou-dois-tiagopellizzaro/. Acesso em: 13/09/2019.)
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Crise de sensatez
É possível que o que vou dizer nesta crônica
espante o leitor como espantou a mim, ao pensá-lo. É que nunca o pensara antes, nem supunha
que tal pensamento me ocorresse um dia, a
sério. Foi o seguinte: pensei que é melhor ser
louco que sensato, como sou.
Refiro-me ao louco de fato, não estou usando
de metáfora, como quando se diz “Fulano é
loucão”. Nada disso, falo do cara que ouve vozes
e acredita que o porteiro do prédio sequestra
meninas, mata-as, cozinha-as em grandes
panelas que tem em sua casa e as come. Refiro-me ao sujeito que é pirado mesmo, necessitando
de internações e remédios. Doido varrido.
Mas por que isso, por que achar que ser
doido é melhor do que ser normal?
Simplesmente porque o doido inventa a
existência como lhe apraz, sem dar bola para o
que nós outros chamamos de realidade.
Não é só isso, porém, ou melhor, isso não é
o principal motivo de minha opção preferindo a
loucura à normalidade. A razão mesmo é que a
visão dita normal não explica a realidade,
irredutível a ela.
Por exemplo, alguém é capaz de dizer por
que existe o mundo em vez de nada? Ninguém
sabe a resposta a essa pergunta. E outra: houve
um tempo em que nada existia, antes de haver o
universo? É impossível imaginar um tempo em
que nada existia. Ou seja, a sensatez não explica
a existência e muito menos a não existência.
Veja bem, essas perguntas são feitas por
gente sensata, ou seja, quem as formula é quem
pretende reduzir a existência do mundo a
explicações objetivas e compreensíveis. Quem
não quer entender, não faz perguntas. Isto é, só
os sensatos as fazem; os loucos, não. Se fazem
algumas perguntas, são outras, insensatas, e as
respostas que encontram são mais loucas ainda.
Não consigo impedir que certas perguntas
me perturbem. Por exemplo, o sistema solar mais
próximo da Terra está a uma distância de 4,3
anos-luz, ou seja, a distância que a luz percorre à
velocidade de 300 mil quilômetros por segundo.
Como nenhuma nave pode viajar à velocidade da
luz, porque se desintegraria, viraria luz, jamais
algum habitante da Terra poderá chegar àquele
sistema solar. Mesmo que viajasse a 300 mil
quilômetros por hora, levaria séculos para chegar
lá. O que dizer dos sóis que estão a 1 milhão ou 2 milhões de anos-luz? Ou seja, o universo existe
apenas para ser contemplado por nós, de longe.
Mas é o de menos. Pensa só nisto: o nosso
sistema solar, com todos os planetas que o
constituem, e os satélites e tudo o mais, equivale
a 2% da massa total do Sol, que é uma estrela
de quinta grandeza; quer dizer, não é das
maiores.
Só na Via Láctea, há bilhões de outros sóis
e, no universo, há bilhões de galáxias
infinitamente maiores que a Via Láctea, com
bilhões e bilhões de sóis. Dá para entender isso?
Pode alguém achar que a mente humana é
capaz de explicar um troço como esse, que
excede toda e qualquer possibilidade de
abranger e compreender? Não resta dúvida de
que o universo, por suas incomensuráveis
dimensões, está para além da compreensão
humana. Concorda comigo ou não? Claro que
concorda. Se não concorda, o doido é você.
Mas, tudo bem, esqueça as galáxias e me
explica a existência desta pequenina aranha que
surgiu presa ao filtro de parede na minha
cozinha. Ela é minúscula e sua teia tão tênue que
nem sequer consigo vê-la. Só sei que a teia
existe porque a aranha não poderia estar
suspensa no ar sem nada em que se apoiasse.
A aranha não é igual à barata nem ao rato, já
que, além do mais, são maiores que ela, têm
outra forma e não produzem teia, que, quase
invisível, é uma armadilha mortal para os insetos.
Foi a aranha quem bolou essa armadilha, quem a
inventou? Se não foi ela, quem foi então? Não
me diga que foi Deus, porque essa é a resposta
que facilmente explica tudo.
A verdade é que não dá para entender, a
existência não tem explicação, e o que não tem
explicação é absurdo. Absurdo para quem,
sensato como eu, quer entendê-la. Já o louco
não busca explicações sensatas. Inventa alguma
tão absurda quanto o próprio universo. Enfim, a
existência é a existência, não precisa de lógica. E
é, por isso mesmo, maravilhosa.
(Ferreira Goulart. Caderno Ilustrado do Jornal Folha de São Paulo. Julho de 2013.)
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A minha salamandra
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei
saber se uma salamandra tinha quatro ou seis
pernas. Já não me lembro em que episódio
novelesco pretendia envolver as pernas da minha
salamandra, mas a verdade é que precisava
saber — e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias
pernas? Pensava então, deixando que elas me
levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas
muito esquisitas. A experiência própria nem
sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha
infância nos galhos de uma mangueira,
chupando manga o dia todo, e não soube
responder a um meu amigo, excelente
romancista, quanto tempo levava para germinar
um caroço de manga.
Contou-me ele, na época, que andou
precisando saber este pormenor, em razão de
uma história que estava escrevendo. Depois de
perguntar a um e outro, e não obtendo senão
respostas vagas, telefonou para a repartição do
Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais
apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário
que o atendeu ficou simplesmente perplexo:
— Caroço de manga? Que brincadeira é
essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente,
havia quem talvez soubesse — um especialista no
assunto, lotado num departamento ao qual estava
afeto o setor de fruticultura. Discou para lá — mas só
conseguiu colher vagos palpites:
— Um caroço de manga? Bem, deve levar
um ou dois meses, o senhor não acha?
— Não acho nada: preciso saber com
exatidão.
— Por quê?
— Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente
despertavam reminiscências infantis:
— Na minha casa tinha uma mangueira. A
manga-espada, por exemplo, se bem me
lembro...
— Boa é a manga carlota, aquela pequenina,
sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de
itamaracá.
— O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer
com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do
Ministro:
— Queria uma informaçãozinha de Vossa
Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país
de economia essencialmente agrícola se
ninguém, nem o próprio Ministro da Agricultura,
sabe informar quanto tempo leva para germinar
um caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e
silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se
não sei dizer com quantas pernas se faz uma
salamandra? O mundo anda cheio de pernas, e
o coração do poeta já perguntou para que tanta
perna, meu Deus. As da salamandra — quatro,
ou seis — nada acrescentam ao meu mundo
interior, senão a ligeira desconfiança de que
acabo tendo quatro. No entanto, as de uma
jovem galgando comigo as pedras do Arpoador,
por exemplo, apenas duas, podem sustentar o
universo — vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que
um caroço de manga. Onde se acendem estrelas
inexistentes e os astros desandam nas suas
órbitas. Onde se abrem abismos de uma
profundeza que nem a imaginação do romancista
ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais
exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas
sombras se arrastam seres vorazes e bem mais
misteriosos que a salamandra, salamandras...
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. 14ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2010.)
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Questão presente nas seguintes provas
A minha salamandra
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei
saber se uma salamandra tinha quatro ou seis
pernas. Já não me lembro em que episódio
novelesco pretendia envolver as pernas da minha
salamandra, mas a verdade é que precisava
saber — e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias
pernas? Pensava então, deixando que elas me
levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas
muito esquisitas. A experiência própria nem
sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha
infância nos galhos de uma mangueira,
chupando manga o dia todo, e não soube
responder a um meu amigo, excelente
romancista, quanto tempo levava para germinar
um caroço de manga.
Contou-me ele, na época, que andou
precisando saber este pormenor, em razão de
uma história que estava escrevendo. Depois de
perguntar a um e outro, e não obtendo senão
respostas vagas, telefonou para a repartição do
Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais
apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário
que o atendeu ficou simplesmente perplexo:
— Caroço de manga? Que brincadeira é
essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente,
havia quem talvez soubesse — um especialista no
assunto, lotado num departamento ao qual estava
afeto o setor de fruticultura. Discou para lá — mas só
conseguiu colher vagos palpites:
— Um caroço de manga? Bem, deve levar
um ou dois meses, o senhor não acha?
— Não acho nada: preciso saber com
exatidão.
— Por quê?
— Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente
despertavam reminiscências infantis:
— Na minha casa tinha uma mangueira. A
manga-espada, por exemplo, se bem me
lembro...
— Boa é a manga carlota, aquela pequenina,
sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de
itamaracá.
— O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer
com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do
Ministro:
— Queria uma informaçãozinha de Vossa
Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país
de economia essencialmente agrícola se
ninguém, nem o próprio Ministro da Agricultura,
sabe informar quanto tempo leva para germinar
um caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e
silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se
não sei dizer com quantas pernas se faz uma
salamandra? O mundo anda cheio de pernas, e
o coração do poeta já perguntou para que tanta
perna, meu Deus. As da salamandra — quatro,
ou seis — nada acrescentam ao meu mundo
interior, senão a ligeira desconfiança de que
acabo tendo quatro. No entanto, as de uma
jovem galgando comigo as pedras do Arpoador,
por exemplo, apenas duas, podem sustentar o
universo — vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que
um caroço de manga. Onde se acendem estrelas
inexistentes e os astros desandam nas suas
órbitas. Onde se abrem abismos de uma
profundeza que nem a imaginação do romancista
ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais
exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas
sombras se arrastam seres vorazes e bem mais
misteriosos que a salamandra, salamandras...
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. 14ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2010.)
Provas
Questão presente nas seguintes provas
Crise de sensatez
É possível que o que vou dizer nesta crônica
espante o leitor como espantou a mim, ao pensá-lo. É que nunca o pensara antes, nem supunha
que tal pensamento me ocorresse um dia, a
sério. Foi o seguinte: pensei que é melhor ser
louco que sensato, como sou.
Refiro-me ao louco de fato, não estou usando
de metáfora, como quando se diz “Fulano é
loucão”. Nada disso, falo do cara que ouve vozes
e acredita que o porteiro do prédio sequestra
meninas, mata-as, cozinha-as em grandes
panelas que tem em sua casa e as come. Refiro-me ao sujeito que é pirado mesmo, necessitando
de internações e remédios. Doido varrido.
Mas por que isso, por que achar que ser
doido é melhor do que ser normal?
Simplesmente porque o doido inventa a
existência como lhe apraz, sem dar bola para o
que nós outros chamamos de realidade.
Não é só isso, porém, ou melhor, isso não é
o principal motivo de minha opção preferindo a
loucura à normalidade. A razão mesmo é que a
visão dita normal não explica a realidade,
irredutível a ela.
Por exemplo, alguém é capaz de dizer por
que existe o mundo em vez de nada? Ninguém
sabe a resposta a essa pergunta. E outra: houve
um tempo em que nada existia, antes de haver o
universo? É impossível imaginar um tempo em
que nada existia. Ou seja, a sensatez não explica
a existência e muito menos a não existência.
Veja bem, essas perguntas são feitas por
gente sensata, ou seja, quem as formula é quem
pretende reduzir a existência do mundo a
explicações objetivas e compreensíveis. Quem
não quer entender, não faz perguntas. Isto é, só
os sensatos as fazem; os loucos, não. Se fazem
algumas perguntas, são outras, insensatas, e as
respostas que encontram são mais loucas ainda.
Não consigo impedir que certas perguntas
me perturbem. Por exemplo, o sistema solar mais
próximo da Terra está a uma distância de 4,3
anos-luz, ou seja, a distância que a luz percorre à
velocidade de 300 mil quilômetros por segundo.
Como nenhuma nave pode viajar à velocidade da
luz, porque se desintegraria, viraria luz, jamais
algum habitante da Terra poderá chegar àquele
sistema solar. Mesmo que viajasse a 300 mil
quilômetros por hora, levaria séculos para chegar
lá. O que dizer dos sóis que estão a 1 milhão ou 2 milhões de anos-luz? Ou seja, o universo existe
apenas para ser contemplado por nós, de longe.
Mas é o de menos. Pensa só nisto: o nosso
sistema solar, com todos os planetas que o
constituem, e os satélites e tudo o mais, equivale
a 2% da massa total do Sol, que é uma estrela
de quinta grandeza; quer dizer, não é das
maiores.
Só na Via Láctea, há bilhões de outros sóis
e, no universo, há bilhões de galáxias
infinitamente maiores que a Via Láctea, com
bilhões e bilhões de sóis. Dá para entender isso?
Pode alguém achar que a mente humana é
capaz de explicar um troço como esse, que
excede toda e qualquer possibilidade de
abranger e compreender? Não resta dúvida de
que o universo, por suas incomensuráveis
dimensões, está para além da compreensão
humana. Concorda comigo ou não? Claro que
concorda. Se não concorda, o doido é você.
Mas, tudo bem, esqueça as galáxias e me
explica a existência desta pequenina aranha que
surgiu presa ao filtro de parede na minha
cozinha. Ela é minúscula e sua teia tão tênue que
nem sequer consigo vê-la. Só sei que a teia
existe porque a aranha não poderia estar
suspensa no ar sem nada em que se apoiasse.
A aranha não é igual à barata nem ao rato, já
que, além do mais, são maiores que ela, têm
outra forma e não produzem teia, que, quase
invisível, é uma armadilha mortal para os insetos.
Foi a aranha quem bolou essa armadilha, quem a
inventou? Se não foi ela, quem foi então? Não
me diga que foi Deus, porque essa é a resposta
que facilmente explica tudo.
A verdade é que não dá para entender, a
existência não tem explicação, e o que não tem
explicação é absurdo. Absurdo para quem,
sensato como eu, quer entendê-la. Já o louco
não busca explicações sensatas. Inventa alguma
tão absurda quanto o próprio universo. Enfim, a
existência é a existência, não precisa de lógica. E
é, por isso mesmo, maravilhosa.
(Ferreira Goulart. Caderno Ilustrado do Jornal Folha de São Paulo. Julho de 2013.)
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Ficou dois
Faz quase 20 anos. Eu estava no mezanino
de um auditório prestigiando a formatura de um
grande amigo. Ele cursou Direito numa instituição
muito qualificada e seu tão esperado momento
de comemoração pelo término da faculdade
havia chegado. Duas fileiras abaixo e duas
cadeiras para a esquerda, um rapaz
acompanhava todo o desenrolar do evento. Não
informo o nome do meu amigo, da instituição e do
rapaz para não criar constrangimentos. Pra falar a
verdade, desconheço o nome do rapaz, mas, como
sei que hoje qualquer pista leva rapidinho à
descoberta de quem é a pessoa, prefiro preservá-la. Não estou aqui para testar a eficiência do
jornalismo investigativo, mas para compartilhar
uma das situações pitorescas por mim
vivenciadas, de modo a refletir sobre ela e,
principalmente, aprender com ela.
No palco e na plateia, havia alegria para dar
e vender. De repente, o paraninfo foi chamado
para fazer o seu pronunciamento. Por um bom
tempo, uma saudação efusiva se manteve até
que começasse a falar. Tão logo cessou aquela
manifestação calorosa, o rapaz desatou a gritar:
“ficou dois!”. A frase deixou subentendido que ele
mesmo ou algum amigo dele teria sido reprovado
pelo paraninfo. Uma mensagem assim lançada
aos quatro ventos naquele ambiente, a priori,
depõe contra a integridade do docente.
“Carrasco, por que reprovar formandos? Que
falta de sensibilidade! – poderia pensar o
público”. Revisitando esse episódio nos dias de
hoje, eu até conseguiria me colocar no lugar do
paraninfo e indagaria: será que esses dois alunos
se empenharam ao realizar os trabalhos e provas
da disciplina? Caso sim, qual a qualidade desses
trabalhos? Como foi o desempenho dos
discentes nas avaliações? Será que eles foram
assíduos e, mais que isso, foram pró-ativos e
participativos nas aulas? Ou demonstraram descaso
ao longo do semestre? Supondo que tivessem
apresentado dificuldades, será que procuraram
conversar com o professor sobre esse assunto? Por
fim, deve haver diferença de tratamento entre um
aluno formando e um não formando?
Ninguém é paraninfo por acaso. Trata-se de
uma pessoa que granjeia ampla credibilidade e
confiança junto aos concluintes da graduação.
Não sou do Direito, mas busco agir com justiça na
prática do ensino. Creio, sinceramente, que não
haja professores com maior senso de justiça que
os dedicados ___ área do Direito. Todos, a bem da verdade, somos juízes, e por isso mesmo
muitas vezes julgamos fatos e indivíduos com
base nas aparências e em poucas ocasiões
alicerçados na essência das coisas. É lamentável
tal realidade, porém, o importante é que o
paraninfo e os dois alunos devem saber o porquê
daquelas reprovações. De minha parte, além de
dar crédito ao professor e entender que a conduta
do rapaz acabou sendo completamente
deselegante, lembro-me que me debati demais
para não perder a compostura. “Ficou dois! Que
pérola! Se o cara ainda for do Direito, sensacional!
– avaliava com meus botões, esforçando-me para
que risada nenhuma irrompesse naquele
instante”. Sim, porque pela gramática tradicional
o correto seria dizer “ficaram dois”.
Acontece que mais tarde compreendi que a
gramática deve, de preferência, ser dominada
pelos falantes da língua portuguesa, porém em
muitos casos ela é simplesmente um livro no qual
diversos conteúdos estão sepultados. Já ___
língua, objeto de estudo dos linguistas, quem dá
vida é o povo. E nada é mais heterogêneo do
que o povo, se considerarmos, especialmente, as
regiões e os níveis de escolaridade das
diferentes gerações de nosso país. Não
podemos esquecer que na praia, no bem-bom
das férias, não se fala com a formalidade que uma
reunião de negócios demanda. Além disso, a
oralidade, invariavelmente, decorre da
improvisação discursiva do emissor, ao passo
que a linguagem escrita é afeita ao planejamento
e à revisão textual. Os sociolinguistas estudiosos
da variação diafásica que o digam.
Independentemente de seus posicionamentos –
que merecem e aqui recebem, de antemão, todo o
meu respeito e apreço –, concluo que, na situação
de comunicação exposta, o rapaz se pronunciou de
modo inadequado. Mais do que isso: perdeu uma
ótima oportunidade para ficar calado. Se assim
procedesse, para a felicidade dos gramáticos, teria
deixado o Rui Barbosa descansar em paz.
(Texto adaptado especialmente para esta prova.
Disponível em:
https://www.linkedin.com/pulse/ficou-dois-tiagopellizzaro/. Acesso em: 13/09/2019.)
A respeito de algumas peculiaridades que o texto apresenta, marque V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas.
( ) O autor conta a história vivenciada por um amigo, pois estava ausente do local em que ela aconteceu.
( ) O título “Ficou dois” se deve à comunicação feita por uma pessoa da plateia e dirigida, numa cerimônia de formatura, ao patrono de uma turma.
( ) O autor, baseado na visão da gramática tradicional, considera uma pérola o dito “ficou dois”.
A sequência está correta em
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A minha salamandra
Certa vez, escrevendo uma novela, precisei
saber se uma salamandra tinha quatro ou seis
pernas. Já não me lembro em que episódio
novelesco pretendia envolver as pernas da minha
salamandra, mas a verdade é que precisava
saber — e não fiquei sabendo.
Que sei eu a respeito de minhas próprias
pernas? Pensava então, deixando que elas me
levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas
muito esquisitas. A experiência própria nem
sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha
infância nos galhos de uma mangueira,
chupando manga o dia todo, e não soube
responder a um meu amigo, excelente
romancista, quanto tempo levava para germinar
um caroço de manga.
Contou-me ele, na época, que andou
precisando saber este pormenor, em razão de
uma história que estava escrevendo. Depois de
perguntar a um e outro, e não obtendo senão
respostas vagas, telefonou para a repartição do
Ministério da Agricultura que lhe pareceu mais
apta a fornecer-lhe a informação. O funcionário
que o atendeu ficou simplesmente perplexo:
— Caroço de manga? Que brincadeira é
essa?
Como insistisse, informaram-lhe que, realmente,
havia quem talvez soubesse — um especialista no
assunto, lotado num departamento ao qual estava
afeto o setor de fruticultura. Discou para lá — mas só
conseguiu colher vagos palpites:
— Um caroço de manga? Bem, deve levar
um ou dois meses, o senhor não acha?
— Não acho nada: preciso saber com
exatidão.
— Por quê?
— Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente
despertavam reminiscências infantis:
— Na minha casa tinha uma mangueira. A
manga-espada, por exemplo, se bem me
lembro...
— Boa é a manga carlota, aquela pequenina,
sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de
itamaracá.
— O caroço? Bem, o caroço, para lhe dizer
com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do
Ministro:
— Queria uma informaçãozinha de Vossa
Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país
de economia essencialmente agrícola se
ninguém, nem o próprio Ministro da Agricultura,
sabe informar quanto tempo leva para germinar
um caroço de manga?
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e
silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas
pernas? Que futuro tenho eu como escritor, se
não sei dizer com quantas pernas se faz uma
salamandra? O mundo anda cheio de pernas, e
o coração do poeta já perguntou para que tanta
perna, meu Deus. As da salamandra — quatro,
ou seis — nada acrescentam ao meu mundo
interior, senão a ligeira desconfiança de que
acabo tendo quatro. No entanto, as de uma
jovem galgando comigo as pedras do Arpoador,
por exemplo, apenas duas, podem sustentar o
universo — vertiginoso universo onde as
sensações germinam bem mais depressa que
um caroço de manga. Onde se acendem estrelas
inexistentes e os astros desandam nas suas
órbitas. Onde se abrem abismos de uma
profundeza que nem a imaginação do romancista
ousa devassar. Onde vicejam plantas bem mais
exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas
sombras se arrastam seres vorazes e bem mais
misteriosos que a salamandra, salamandras...
(SABINO, Fernando. As melhores crônicas. 14ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 2010.)
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