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1005658 Ano: 2008
Disciplina: Português
Banca: PM-MG
Orgão: PM-MG
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Fofocas e celebridades

Na manhã de segunda-feira, quando comecei a escrever esta coluna, três das cinco notícias mais lidas da Folha Online poderiam ser consideradas fofoca: "Daniel deixa equipe da Record irritada" (2º lugar), "Ministério abre processo contra dança erótica de Flávia Alessandra" (4º lugar) e "Meia Kaká, do Milan, vai ser pai" (5º lugar). As duas notícias "de verdade" eram: "Governador interdita Fonte Nova e lamenta acidente em nota oficial" (1º lugar) e "Polícia divulga nomes de sete mortos na tragédia da Fonte Nova" (3º lugar).

Arrisco dizer que, se não houvesse a catástrofe quentinha do desabamento do estádio, mexericos ocupariam ainda mais espaço. Mas o que são exatamente fofocas e por que elas provocam tanto fascínio?

É difícil até mesmo conceituar esse termo. Os dicionários que consultei trazem todos, ainda que com diferentes graus de ênfase, definições pouco abonadoras. Na melhor das hipóteses pintam-no como afirmação não-baseada em fatos; na pior, como dito malicioso, intriga.

Receio que ambas as significações fiquem muito aquém da verdadeira instituição que é a bisbilhotice. Para começar, trata-se de um universal humano, isto é, está presente em todas as culturas de que se tem conhecimento. Onde quer que existam três ou mais pessoas, haverá fofoca.

Não é difícil especular (verbo que, no fundo, é um dos sinônimos de fofocar) sobre a origem do hábito. Somos seres gregários dependentes do altruísmo recíproco. Só que nem todos os representantes da espécie apresentam a mesma propensão a colaborar. Assim, antes de dividir com alguém aquele filé de brontossauro (calma, gente, é só uma piada; não estou sugerindo que humanos e apatossauros conviveram) a duras penas obtido, preciso saber se esta pessoa é confiável, ou seja, se estará disposta a devolver a gentileza quando eu passar por dificuldades.

Alguns milênios lidando com a necessidade de coletar e manter informações sobre o caráter de cada membro do clã e da aldeia bastaram para nos tornar fofoqueiros profissionais. Verdadeiras sucursais da Abin, perseguimos com avidez dados sobre as pessoas. E vamos buscá-los onde eles estão disponíveis, isto é, com as vizinhas (a flexão no feminino é meio machista, admito, mas nem por isso menos real). Se os "dossiês" são ou não precisos é uma outra questão, menos importante.

Só que as aldeias cresceram e viraram cidades, algumas das quais depois se converteram em metrópoles. Não perdemos o hábito de comentar a vida alheia, apenas o direcionamos a grupos mais específicos como as celebridades, cuja principal função é justamente a de ter suas vidas transformadas em espetáculo para que possamos difamá-las ou, mais raramente, louvar-lhes as virtudes.

É aí que entra uma outra importante característica da mexeriquice. Além de nos municiar com informações potencialmente valiosas, ela ajuda a reforçar os vínculos sociais entre os membros da comunidade. Isso pode parecer paradoxal, sobretudo se você é o objeto da maledicência, mas um interessante trabalho de Robin Dunbar, do University College, de Londres, mostra que humanos dedicam em média 60% do tempo de suas conversações a futricas. A hipótese do antropólogo é que, com o advento da linguagem, a fofoca substituiu a catação de piolhos que, entre primatas não-humanos, constitui a principal atividade social. É através da limpeza de pelagem que se aprende, por observação direta, quais membros da comunidade tendem a colaborar e quais não, quem devolve um favor e quem não é confiável, e, a partir daí, se forjam as alianças e coalizões.

Dunbar vai além e sugere que os grupos humanos só puderam crescer em tamanho porque redes de intrigas possibilitadas pela linguagem tomaram o lugar da catação. É que a fofoca maximiza o número de relações que cada membro da comunidade pode manter com outros. Esse dado é consistente com a correlação positiva encontrada entre o volume neocortical e o tamanho do bando. Humanos poderiam relacionar-se com até 150 pessoas formando ainda grupos estáveis. Populações maiores tenderiam a dividir-se.

Há outros aspectos interessantes da fofoca. Pessoalmente, gosto de seu caráter subversivo. É inegável que ela representa poder, um poder informal e anônimo, o que o torna virtualmente incontrolável. Um rumor, mesmo que infundado, pode fazer ruir a mais sólida instituição bancária. A versão se torna maior do que o fato. E não podemos desprezar o papel que as piadas anticomunistas tiveram na queda dos Estados-satélites da URSS. Eram as anedotas a respeito das filas, da carência de produtos e da repressão, espalhadas pelas mesmas redes informais dos mexericos, que indicavam à população que os regimes eram menos sólidos do que a propaganda oficial fazia supor. Acho que seria exagero afirmar que a fofoca derrubou o Muro de Berlim, mas acho que dá para dizer que, sem o livre fluxo de informação por ela canalizado, os controles dos burocratas teriam funcionado melhor. Não é à toa que a fofoca, definida como "má língua" ("lashon hara" em hebraico), é condenada primeiro pelo judaísmo (Levítico 19:16) e, a seguir, pelo cristianismo e pelo islamismo --o que me fez ficar simpático a ela.

Antes, porém, de lançarmos a Internacional Revolucionária das Comadres vale lembrar que estamos diante de um poder ambíguo. A tagarelice também pode ser extremamente reacionária. Se o senso comum já tende a ser conservador, dotá-lo de canais de propagação informais e pouco afeitos à responsabilização individual equivale a massacrar a opinião minoritária e inovadora, que só subsiste através do registro escrito (uma novidade bem recente em termos evolutivos) ou em grupos muito grandes. Hoje, com o auxílio da internet, encontramos comunidades inteiras centradas em torno de idéias muitas vezes esdrúxulas. Assim, quando nos apanhamos lendo as últimas do Daniel ou da Flávia Alessandra, e mesmo quando nos queixamos do baixo nível do público, que só quer saber de fofocas, estamos dando vazão a um dos traços que nos distinguem de outros primatas. Podemos e devemos apreciar tal característica de forma crítica, até para que possamos compreendê-la melhor, mas é tolice achar que conseguiremos eliminá-la. Assim como a religião, o tabu do incesto e as piadas de português (todo povo elege um vizinho para fazer troça.), a fofoca é um universal humano ao qual, como humanos, devemos nos sujeitar. Paro um pouco antes de concluir que é nosso interesse pelos ditos e feitos da Daniela Cicarelli que nos torna humanos.

Disponível em: <http://www.1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u349451.shtml>

(...) mas o calango de fato parecia envolvido numa atmosfera de riso, algo sugeria que estava mesmo. Não era, contudo, uma visão agradável, porque havia um pouco, talvez muito, de mofa no sorriso, quase hostilidade.”

“(...) mas depois de uma sucessão ininterrupta de falcatruas, desvios de verbas, comissionamentos em obras e compras públicas, subornos, grilagens e diversas modalidades de recebimentos por advocacia administrativa, durante uma vida pública de pouco mais de vinte anos, havia ficado milionário (...)”.

“Tratou-se de criar um número limitado deles, número esse já conseguido, para uma série de estudos. As utilidades hipotéticas eram muitas, desde a formação de banco de órgãos, até testes de medicamentos e vacinas.”

“Ninguém devia ser consultado, ninguém entende o suficiente do assunto para orientar essas decisões.”

As passagens citadas podem traduzir o tema básico do romance “O Sorriso do Lagarto”, de João Ubaldo, sendo:

 

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